Educação

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Ensino sobre herança africana nas escolas é obrigatório há 21 anos, mas currículos não cumprem lei

Especialistas e atĂ© gestor da Educação no CearĂĄ apontam que inserção da temĂĄtica nas salas de aula Ă© "pontual"

Por Globo Cariri 06/11/2024 às 09:06:58

Reprodução

Pensando em uma futura vaga no ensino superior, milhões de candidatos brasileiros precisaram voltar os olhos ao passado, domingo (3), para escrever a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) sobre os "Desafios para a valorização da herança africana no Brasil".

O tema é avaliado por educadores como rico, diverso e fundamental – e não deveria ser novidade para os estudantes. Duas leis federais, de 2003 e de 2008, determinam o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileirae indĂ­gena como obrigatório em todas as escolas pĂșblicas e privadas do PaĂ­s.

Na prĂĄtica, porém, a inclusão dos conteĂșdos no currĂ­culo ainda não acontece, segundo professores, pesquisadores e um gestor ouvidos pelo DiĂĄrio do Nordeste. Os principais motivos, segundo eles, são falta de formação dos docentes e de recursos especĂ­ficos para a implementação.

As duas leis federais que pesam sobre o ensino do CearĂĄ e do Brasil nessa temĂĄtica são:

  • Lei nÂș 10.639, de 2003: institui a obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas pĂșblicas e privadas.
  • Lei nÂș 11.645, de 2008: incluiu o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e IndĂ­gena no currĂ­culo oficial das redes de ensino pĂșblicas e particulares.

O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 2004, um parecer propondo as "Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras".

A legislação determina que o currĂ­culo deve incluir nos conteĂșdos, "resgatando a contribuição do povo negro nas ĂĄreas social, econômica e polĂ­tica pertinentes à História do Brasil":

  • História da África e dos Africanos;
  • A luta dos negros no Brasil;
  • A cultura negra brasileira;
  • O negro na formação da sociedade nacional.

Uma pesquisa do Instituto Alana em 2022 mostrou que 53% das secretarias municipais de educação que responderam ao estudo "realizam ações para implementação da Lei 10.639 de forma menos estruturada e esporĂĄdica, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como durante o mĂȘs do Dia da ConsciĂȘncia Negra".

"HĂĄ também o grupo que admite não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da legislação, chegando a 18% dos respondentes", acrescenta o relatório da pesquisa.

Entre os entraves citados pelos dirigentes, estão "a dificuldade dos profissionais em inserir a temĂĄtica nos currĂ­culos e projetos escolares, a ausĂȘncia de informação e orientação e a falta de planejamento permanente e constante em torno da agenda antirracista".

A reportagem questionou ao Ministério PĂșblico do Estado do CearĂĄ (MPCE) se o órgão possui alguma atuação no assunto, sobretudo monitorando e estimulando a aplicação da legislação pelas secretarias de Educação. O órgão não enviou resposta até a publicação deste texto.

"CurrĂ­culo colonizado"

A professora ClĂĄudia Quilombola, mestre em Educação Brasileira e doutoranda em Educação, explica que a lei de 2003 "alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)" – e, portanto, a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) é bĂĄsica e obrigatória.

Mas a docente, que atua na rede municipal de Caucaia, é categórica ao afirmar que "isso não acontece": os conteĂșdos são relegados à "parte diversificada" do currĂ­culo, ficando de fora do oficial obrigatório abordado pelas disciplinas.

"O desenvolvimento da temĂĄtica nas escolas brasileiras ainda não estĂĄ implementado de fato. Temos um currĂ­culo pautado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que orienta o que é obrigatório. Mas ela trata a educação racial de uma forma muito generalizada."

ClĂĄudia pontua que o termo "diversidade" é utilizado na BNCC para "abarcar tudo", o que não contribui para a inserção concreta dos conteĂșdos nas salas de aula.

"Nós que estamos no dia a dia das escolas, que queremos que isso aconteça, sabemos que tem que dar nome às coisas: Educação para as Relações Étnico-Raciais é uma coisa, Educação Escolar Quilombola é outra. Educação do campo, indĂ­gena, e vĂĄrios outros tipos de modalidade que não podem ser suprimidas em um Ășnico termo, "diversidade"", critica.

O currĂ­culo ainda é colonizado em todos os espaços que tratam do ensino. É um projeto de colonização que traz esse curriculo imposto de cima pra baixo, com autores não-negros, estrangeiros, que não trazem a nossa realidade. Não podemos deixar de conhecĂȘ-los, mas precisamos valorizar o que nós temos.

ClĂĄudia Quilombola

Professora e doutoranda em Educação

Outro aspecto, como aponta a quilombola, é a falta de recursos para preparação dos professores. "Uma polĂ­tica pĂșblica sem recurso não acontece. Precisa ter recurso financeiro para contratar pessoas com experiĂȘncia nessa questão, fazer as formações continuadas e especĂ­ficas; bem como a aquisição de materiais especĂ­ficos e bem avaliados", lista.

A falta de acesso a formações impacta inclusive na capacidade de gestores e professores se desvencilharem do racismo estrutural para elaborar currĂ­culos que incluam, de fato, a temĂĄtica afro-brasileira.

É o que avalia Kellynia Alves, professora de Diversidade étnico-racial e culturas afro-brasileiras e indĂ­genas na Faculdade de Educação e CiĂȘncias Integradas do Sertão de Canindé, ligada à Universidade Estadual do CearĂĄ (Uece).

"Temos o currĂ­culo formal e o "oculto", que é aquele influenciado pelas prĂĄticas cotidianas das pessoas. Por mais que se crie uma lei, o racismo, a branquitude e todos esses movimentos vão tentar impedir a implementação e trazĂȘ-la de uma forma subalternizada, menos importante."

A professora pontua que o que existe nas escolas, hoje, é um "trabalho de maneira pontual, uma atividade numa semana, no mĂȘs, em data comemorativa, e a vida segue sem alterar os valores que estruturam essa discriminação, a violĂȘncia racial".

"É preciso um currĂ­culo orgânico, que esteja em movimento, que valorize a memória e a influencia africana como uma dimensão importante da formação do povo brasileiro. A gente precisa reeducar as nossas relações étnico-raciais. O caminho é dialogar com todas as ĂĄreas de conhecimento – e não tratar como se fosse um currĂ­culo turĂ­stico", complementa.

"Educadores não conhecem a lei"

Um diagnóstico feito pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc) nas escolas da rede no CearĂĄ identificou a "fragilidade da inserção desse temanas salas de aula", como reconhece Helder Nogueira, secretĂĄrio executivo de Equidade e Direitos Humanos da Seduc.

Mesmo 21 anos após a sanção da lei que obriga a inclusão da herança africana nos assuntos ensinados a crianças e adolescentes, ela não existe de forma consistente entre os cearenses.

"Uma parte significativa dos educadores não conhece a lei. E o fato de ela prever uma inserção de forma transversal faz com que não fique bem estruturada no cotidiano da escola. Intensificamos esse trabalho pra que a gente consiga inserir de fato", pontua Helder.

O secretĂĄrio frisa que o foco das ações tem sido nas gestões escolares, "buscando inserir esses temas no cotidiano das escolas não só no currĂ­culo, mas olhando pra racialização dos dados de matrĂ­cula, incentivando as escolas a analisarem o perfil dos estudantes considerando a autodeclaração racial".

Quanto à formação de professores para que tenham conhecimento e suporte ao tratar as questões étnico-raciais nas salas de aula, Helder reconhece que "é um desafio, porque existem muitas demandas nas escolas do ponto de vista de formação".

Ele garante, contudo, que a Pasta tem promovido avaliações junto às escolas e formações para docentes de todas as ĂĄreas, "para que essa temĂĄtica não seja considerada apenas na ĂĄrea de ciĂȘncias humanas, e sim em todas".

"Estamos realizando um processo de formação de gestores, com autoavaliação das escolas sobre essa temĂĄtica: se jĂĄ inseriu o que a lei prevĂȘ no projeto polĂ­tico-pedagógico, no currĂ­culo posto em prĂĄtica e nas boas prĂĄticas pedagógicas que os professores desenvolvam", cita.

Legado africano no Brasil

Reconhecer as africanidades que costuram o dia a dia da sociedade atual é, para a professora ClĂĄudia Quilombola, a espinha dorsal do ensino sobre as relações étnico-raciais. O ponto de partida, ela afirma, "é descolonizar a nossa mente, processo que é doloroso".

"Precisamos nos desconstruir e reconstruir novamente, nos dar a oportunidade de pensar, inclusive sobre as religiões de matriz africana", destaca a professora da rede municipal de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza.

"Se isso for de fato implementado, os alunos vão se reconhecer. Porque a maioria da população é negra. É uma forma de acabar com o racismo perverso, porque as pessoas precisam valorizar e respeitar o outro que acham diferente. Começamos a mudar o olhar, ver que a nossa verdade não é a Ășnica e absoluta. Funciona, sim, se a gente souber como fazer", sentencia.

A identificação dos próprios estudantes é, no ponto de vista da professora Kellynia Alves, uma fagulha para derrubar, aos poucos, a estrutura que invisibiliza a forte influĂȘncia das matrizes africanas "na cultura, na ciĂȘncia e em diferentes ĂĄreas de conhecimento no CearĂĄ e no Brasil".

"Não superamos ainda o trauma histórico que foi o escravismo no Brasil, esses valores estão entranhados na nossa cultura. E isso afeta também a abordagem do currĂ­culo para valorização das nossas matrizes africanas. O currĂ­culo às vezes ainda trata dessa cultura como adereço, não dĂĄ visibilidade à história da África", lamenta.

O tema ter entrado em pauta em um exame nacional, opina ClĂĄudia Quilombola, jĂĄ é uma conquista.

"Esse tema ter caĂ­do na redação do Enem foi gratificante, porque é uma luta dos movimentos sociais de centenas de anos. Para que as escolas, universidades e todos os sistemas de ensino possam reconhecer e valorizar a contribuição da população negra em todos os aspectos da sociedade."

Fonte: Diario do Nordeste

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