Pensando em uma futura vaga no ensino superior, milhões de candidatos brasileiros precisaram voltar os olhos ao passado, domingo (3), para escrever a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) sobre os "Desafios para a valorização da herança africana no Brasil".
O tema é avaliado por educadores como rico, diverso e fundamental – e não deveria ser novidade para os estudantes. Duas leis federais, de 2003 e de 2008, determinam o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileirae indĂgena como obrigatório em todas as escolas pĂșblicas e privadas do PaĂs.
Na prĂĄtica, porém, a inclusão dos conteĂșdos no currĂculo ainda não acontece, segundo professores, pesquisadores e um gestor ouvidos pelo DiĂĄrio do Nordeste. Os principais motivos, segundo eles, são falta de formação dos docentes e de recursos especĂficos para a implementação.
As duas leis federais que pesam sobre o ensino do CearĂĄ e do Brasil nessa temĂĄtica são:
O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 2004, um parecer propondo as "Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras".
A legislação determina que o currĂculo deve incluir nos conteĂșdos, "resgatando a contribuição do povo negro nas ĂĄreas social, econômica e polĂtica pertinentes à História do Brasil":
Uma pesquisa do Instituto Alana em 2022 mostrou que 53% das secretarias municipais de educação que responderam ao estudo "realizam ações para implementação da Lei 10.639 de forma menos estruturada e esporĂĄdica, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como durante o mĂȘs do Dia da ConsciĂȘncia Negra".
"HĂĄ também o grupo que admite não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da legislação, chegando a 18% dos respondentes", acrescenta o relatório da pesquisa.
Entre os entraves citados pelos dirigentes, estão "a dificuldade dos profissionais em inserir a temĂĄtica nos currĂculos e projetos escolares, a ausĂȘncia de informação e orientação e a falta de planejamento permanente e constante em torno da agenda antirracista".
A reportagem questionou ao Ministério PĂșblico do Estado do CearĂĄ (MPCE) se o órgão possui alguma atuação no assunto, sobretudo monitorando e estimulando a aplicação da legislação pelas secretarias de Educação. O órgão não enviou resposta até a publicação deste texto.
A professora ClĂĄudia Quilombola, mestre em Educação Brasileira e doutoranda em Educação, explica que a lei de 2003 "alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)" – e, portanto, a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) é bĂĄsica e obrigatória.
Mas a docente, que atua na rede municipal de Caucaia, é categórica ao afirmar que "isso não acontece": os conteĂșdos são relegados à "parte diversificada" do currĂculo, ficando de fora do oficial obrigatório abordado pelas disciplinas.
"O desenvolvimento da temĂĄtica nas escolas brasileiras ainda não estĂĄ implementado de fato. Temos um currĂculo pautado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que orienta o que é obrigatório. Mas ela trata a educação racial de uma forma muito generalizada."
ClĂĄudia pontua que o termo "diversidade" é utilizado na BNCC para "abarcar tudo", o que não contribui para a inserção concreta dos conteĂșdos nas salas de aula.
"Nós que estamos no dia a dia das escolas, que queremos que isso aconteça, sabemos que tem que dar nome às coisas: Educação para as Relações Étnico-Raciais é uma coisa, Educação Escolar Quilombola é outra. Educação do campo, indĂgena, e vĂĄrios outros tipos de modalidade que não podem ser suprimidas em um Ășnico termo, "diversidade"", critica.
O currĂculo ainda é colonizado em todos os espaços que tratam do ensino. É um projeto de colonização que traz esse curriculo imposto de cima pra baixo, com autores não-negros, estrangeiros, que não trazem a nossa realidade. Não podemos deixar de conhecĂȘ-los, mas precisamos valorizar o que nós temos.
Outro aspecto, como aponta a quilombola, é a falta de recursos para preparação dos professores. "Uma polĂtica pĂșblica sem recurso não acontece. Precisa ter recurso financeiro para contratar pessoas com experiĂȘncia nessa questão, fazer as formações continuadas e especĂficas; bem como a aquisição de materiais especĂficos e bem avaliados", lista.
A falta de acesso a formações impacta inclusive na capacidade de gestores e professores se desvencilharem do racismo estrutural para elaborar currĂculos que incluam, de fato, a temĂĄtica afro-brasileira.
É o que avalia Kellynia Alves, professora de Diversidade étnico-racial e culturas afro-brasileiras e indĂgenas na Faculdade de Educação e CiĂȘncias Integradas do Sertão de Canindé, ligada à Universidade Estadual do CearĂĄ (Uece).
"Temos o currĂculo formal e o "oculto", que é aquele influenciado pelas prĂĄticas cotidianas das pessoas. Por mais que se crie uma lei, o racismo, a branquitude e todos esses movimentos vão tentar impedir a implementação e trazĂȘ-la de uma forma subalternizada, menos importante."
A professora pontua que o que existe nas escolas, hoje, é um "trabalho de maneira pontual, uma atividade numa semana, no mĂȘs, em data comemorativa, e a vida segue sem alterar os valores que estruturam essa discriminação, a violĂȘncia racial".
"É preciso um currĂculo orgânico, que esteja em movimento, que valorize a memória e a influencia africana como uma dimensão importante da formação do povo brasileiro. A gente precisa reeducar as nossas relações étnico-raciais. O caminho é dialogar com todas as ĂĄreas de conhecimento – e não tratar como se fosse um currĂculo turĂstico", complementa.
Um diagnóstico feito pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc) nas escolas da rede no CearĂĄ identificou a "fragilidade da inserção desse temanas salas de aula", como reconhece Helder Nogueira, secretĂĄrio executivo de Equidade e Direitos Humanos da Seduc.
Mesmo 21 anos após a sanção da lei que obriga a inclusão da herança africana nos assuntos ensinados a crianças e adolescentes, ela não existe de forma consistente entre os cearenses.
"Uma parte significativa dos educadores não conhece a lei. E o fato de ela prever uma inserção de forma transversal faz com que não fique bem estruturada no cotidiano da escola. Intensificamos esse trabalho pra que a gente consiga inserir de fato", pontua Helder.
O secretĂĄrio frisa que o foco das ações tem sido nas gestões escolares, "buscando inserir esses temas no cotidiano das escolas não só no currĂculo, mas olhando pra racialização dos dados de matrĂcula, incentivando as escolas a analisarem o perfil dos estudantes considerando a autodeclaração racial".
Quanto à formação de professores para que tenham conhecimento e suporte ao tratar as questões étnico-raciais nas salas de aula, Helder reconhece que "é um desafio, porque existem muitas demandas nas escolas do ponto de vista de formação".
Ele garante, contudo, que a Pasta tem promovido avaliações junto às escolas e formações para docentes de todas as ĂĄreas, "para que essa temĂĄtica não seja considerada apenas na ĂĄrea de ciĂȘncias humanas, e sim em todas".
"Estamos realizando um processo de formação de gestores, com autoavaliação das escolas sobre essa temĂĄtica: se jĂĄ inseriu o que a lei prevĂȘ no projeto polĂtico-pedagógico, no currĂculo posto em prĂĄtica e nas boas prĂĄticas pedagógicas que os professores desenvolvam", cita.
Reconhecer as africanidades que costuram o dia a dia da sociedade atual é, para a professora ClĂĄudia Quilombola, a espinha dorsal do ensino sobre as relações étnico-raciais. O ponto de partida, ela afirma, "é descolonizar a nossa mente, processo que é doloroso".
"Precisamos nos desconstruir e reconstruir novamente, nos dar a oportunidade de pensar, inclusive sobre as religiões de matriz africana", destaca a professora da rede municipal de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza.
"Se isso for de fato implementado, os alunos vão se reconhecer. Porque a maioria da população é negra. É uma forma de acabar com o racismo perverso, porque as pessoas precisam valorizar e respeitar o outro que acham diferente. Começamos a mudar o olhar, ver que a nossa verdade não é a Ășnica e absoluta. Funciona, sim, se a gente souber como fazer", sentencia.
A identificação dos próprios estudantes é, no ponto de vista da professora Kellynia Alves, uma fagulha para derrubar, aos poucos, a estrutura que invisibiliza a forte influĂȘncia das matrizes africanas "na cultura, na ciĂȘncia e em diferentes ĂĄreas de conhecimento no CearĂĄ e no Brasil".
"Não superamos ainda o trauma histórico que foi o escravismo no Brasil, esses valores estão entranhados na nossa cultura. E isso afeta também a abordagem do currĂculo para valorização das nossas matrizes africanas. O currĂculo às vezes ainda trata dessa cultura como adereço, não dĂĄ visibilidade à história da África", lamenta.
O tema ter entrado em pauta em um exame nacional, opina ClĂĄudia Quilombola, jĂĄ é uma conquista.
"Esse tema ter caĂdo na redação do Enem foi gratificante, porque é uma luta dos movimentos sociais de centenas de anos. Para que as escolas, universidades e todos os sistemas de ensino possam reconhecer e valorizar a contribuição da população negra em todos os aspectos da sociedade."
Fonte: Diario do Nordeste